André Azevedo da Fonseca
Nesta ressaca de Copa de Mundo, não podemos deixar de nos lembrar mais uma vez de Orlando Ferreira (1886-1957), conhecido como “Doca”, o mais atrevido jornalista uberabense do século 20. Para quem não sabe, em 1940 o desbocado comunista irrompeu sua notória fúria “contra tudo e contra todos” em direção a uma das maiores paixões nacionais: o esporte. Trata-se do livro Forja de Anões, um libelo contra o que considerava a maior anomalia da cultura brasileira: o gosto pelo jogo de bola.
Doca lamentava a visível “decadência física da mocidade”, sobretudo tendo em vista os avanços científicos do século. Ele argumentava que a classe médica poderia contribuir para a saúde dos rapazes, “se ela não estivesse envenenada pelo dinheiro” – pois os doutores estavam estimulando os esportes violentos para lucrar com o aumento de pacientes. Ele culpava também a imprensa pela ruína dos jovens, pois com os “relatos minuciosos e repetitivos de feitos esportivos” e os “elogios aos campeões” ela “estimula os jogos violentos, como o foot-ball e outros, cujos malefícios são relatados por ela mesma”. No entanto, o jornalista defendia que médicos e imprensa ainda poderiam tornar-se forças favoráveis ao progresso, caso combatessem as forças maléficas, como “os vícios, as doenças, os esportes violentos, sobretudo o monstruoso foot-ball”.
Para defender sua tese antiesportiva, Doca dizia que o homem não é um animal de atividade muscular, mas um ser cerebral, voltado para a consciência. Por isso, o esgotamento físico é um entrave para a inteligência, haja vista a estreita correspondência entre fadiga corporal e fadiga intelectual. “Um cérebro fatigado possui uma consciência morta, nula, estéril.” Segundo ele, somente o repouso favorece o pensamento. “A fadiga é uma grande inimiga do cérebro e assassina do pensamento”. Doca lembrava que as grandes criações da humanidade foram fruto de pensamento em ambiente tranqüilo, como os laboratórios. “Que seria da sociedade se esta fosse composta somente de corredores fatigados? Estaríamos engolfados no atraso, na miséria física e moral”.
Doca defendia que o homem é por natureza um “animal imóvel”, “frágil”, características que nos diferenciam da besta: “Que importância tem a nossa carreira ante a agilidade diabólica dos animais inferiores, da prodigiosa desenvoltura da serpente, do galope, do cavalo, do salto do leão, do vôo da águia? Proporcionalmente, que vale a força humana ante a força da pulga? No entanto o homem é o mais temível dos animais.” De que adiantam os músculos, questionava, se o homem é um animal sociável, preparado viver pacificamente; se possui inteligência, que vale mais que a força? “A musculatura e a inteligência tem ambas a sua finalidade: aquela, em maior escala, para os animais dotados de garras e dentes afiadíssimos poderem exercer a sua missão triste e bestial; esta, para o homem viver a vida fraternal e transformar o mundo.”
Apesar da fúria, Orlando Ferreira sabia que seria esquecido. “Escrevo, porém, sob a mais dolorosa das impressões: a do desânimo. Ninguém, tenho certeza absoluta, se importará com as minhas palavras, que talvez poderão ter méritos apenas: o de aumentar o número de meus rancorosos inimigos.” Mas ao nos lembrarmos de Forja de Anões em pleno século 21, fica aí a viva provocação de Doca aos novos entusiastas do futebol.
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