André Azevedo da Fonseca
Nepotistas nem sempre são canalhas convictos. Quando observamos seus esforços para justificar a nomeação de parentes em cargos públicos, percebemos em alguns deles uma sincera opinião de que aquilo que fazem é perfeitamente legítimo. O nepotista tradicional, defensor dos bons costumes, jamais se considera um imoral; ao contrário dos cínicos, ele acredita, de todo o coração, que não há nada de errado em encaixar a esposa, o filho ou o cunhado no serviço municipal, designando seus auxiliares através dos critérios da intimidade pessoal. Assim, para examinarmos essa prática tão enraizada em nossa cultura, parece interessante iluminá-la com um termo sociológico de grande força explicativa: o conceito de “homem cordial”, desenvolvido por Sérgio Buarque de Holanda, em um livro que, não por acaso, chama-se Raízes do Brasil.
O termo “cordial”, tal como empregado, não se refere à idéia de polidez e de boa educação. Cordial está ligado etimologicamente à palavra cordis, que em latim significa coração. Ou seja, o homem cordial é aquele que pensa e age com o coração. Seja de forma afetuosa, seja de forma intempestiva, o cordial é incapaz de estabelecer, no espaço público, outras modalidades de relações que não aquelas baseadas nos delicados laços de intimidade que regem a vida privada.
Nas relações de trabalho, o homem cordial não consegue instituir um convívio profissional com os colegas ou com patrão. O cordial só é capaz de relacionar-se através de alianças emocionais. Dessa forma, em vez de ordenar-se em um ambiente fundamentado pelo coleguismo, o cordial procura ligar-se aos outros através de relações pessoais de intimidade – o que pressupõe sentimentos como amizade e benevolência, mas também inimizade e ódio. Assim, as relações profissionais, que deveriam pressupor metas e objetivos alcançados através de disciplina e civilidade nas relações, acabam se consumindo em todo tipo de fervores passionais. O ambiente de trabalho se esvazia da necessária impessoalidade e se enche de “amigos”, “inimigos”, “protegidos” e “desafetos”. Conseqüentemente, os critérios de avaliação profissional deixam de considerar a competência e o talento para valorizar unicamente os pactos de estima pessoal.
Ao projetar na vida pública essa lógica da convivência íntima familiar, o cordial confunde os espaços público e privado e passa a apropriar-se do público como se este fosse o seu território particular. E aí está um dos elementos responsáveis pelo atraso nas instituições brasileiras, e que explica também a moral familiar e anti-social do corrupto. Max Weber percebeu que, ao contrário do que diziam os positivistas, o Estado não é a continuação da família. Na verdade, o Estado moderno se funda exatamente com a superação dos valores da moral familiar através da conduta ética impessoal na sociedade. E é justamente por isso que a simpática tradição do nepotista é tão nefasta para a cidade e para o país. Enquanto as alianças familiares e os laços de amizade permanecerem garantindo cargos no serviço público, desencorajando com isso o talento, a competência e o esforço pela formação profissional, permaneceremos um país cordial, mas atrasado, injusto e corrupto.
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