Friday, August 18, 2006

Lições da democracia grega

André Azevedo da Fonseca



Para esquentar o espírito de cidadania nesse início de campanha eleitoral, ocasião em que políticos gastam todo seu tempo prometendo que serão representantes fiéis da vontade dos eleitores, é muito interessante fazer uma reflexão sobre a democracia clássica ateniense. Lembremos que foram os gregos que inventaram não apenas a democracia, mas também a política, entendida como “a arte de decidir através da discussão pública”.

Em Atenas os cidadãos viviam sob um regime de democracia “direta”, e não “representativa”, como nós. A Assembléia, um verdadeiro comício ao ar livre, era aberta a qualquer interessado. Em princípio, todos os presentes tinham o direito de tomar a palavra: a isegoria – o direito universal de falar na Assembléia – era algumas vezes empregado como sinônimo de democracia.

A Assembléia se reunia pelo menos quarenta vezes durante o ano e geralmente chegava a uma decisão sobre determinado tema em um único dia de debate. As deliberações eram estabelecidas pelo voto da maioria simples daqueles que estivessem presentes. Todos os assuntos a serem votados eram discutidos antecipadamente no dia-a-dia da sociedade. As pessoas conversavam nas lojas, nas tavernas, na praça, nas mesas de jantar e, mais tarde, esses mesmos cidadãos se direcionavam à Assembléia para realizar a votação formal.

Para se ter uma idéia desse espírito democrático, consta-se que nem mesmo o grande general Péricles detinha o poder de decidir sozinho questões relativas à mobilização de tropas na guerra. Todas as suas propostas eram submetidas à votação; visões alternativas eram apresentadas e a decisão final era dos membros da Assembléia, e não de Péricles. Para os atenienses “o reconhecimento da liderança não era acompanhado por uma renúncia ao poder decisório”.

Quase não havia burocracia ou funcionários públicos. A administração era partilhada entre um grande número de cargos anuais e um conselho de 500 cidadãos escolhidos por sorteio. Isso mesmo: através de sorteio eram escolhidos os membros, que não recebiam qualquer remuneração. Consta-se que no século V a.C. funcionários públicos, membros do conselho e jurados recebiam um pequeno per diem – valor menor do que o pagamento diário de um pedreiro. A participação na vida pública por sorteio indica que grande parte dos cidadãos necessariamente tinha alguma experiência direta no governo. Nem os apáticos escapavam da vida em comunidade. Ou seja, ao contrário do atual modelo de democracia, em Atenas a direção do Estado não era um monopólio dos chamados políticos profissionais: todos os cidadãos tinham direito de exercer a política.

A idéia da democracia direta mostra que nosso modelo político ainda pode ser radicalmente transformado através de reformas profundas. Há estudiosos insuspeitos, como o historiador Moses Finley, que defendem a viabilidade do modelo direto aos tempos atuais. Afinal, não devemos nos esquecer que, sob esse sistema, Atenas foi o Estado mais próspero, poderoso, estável e culto do mundo grego por mais de dois séculos. Lembremo-nos dos gregos.

Thursday, August 03, 2006

Os males do monstruoso foot-ball

André Azevedo da Fonseca



Nesta ressaca de Copa de Mundo, não podemos deixar de nos lembrar mais uma vez de Orlando Ferreira (1886-1957), conhecido como “Doca”, o mais atrevido jornalista uberabense do século 20. Para quem não sabe, em 1940 o desbocado comunista irrompeu sua notória fúria “contra tudo e contra todos” em direção a uma das maiores paixões nacionais: o esporte. Trata-se do livro Forja de Anões, um libelo contra o que considerava a maior anomalia da cultura brasileira: o gosto pelo jogo de bola.

Doca lamentava a visível “decadência física da mocidade”, sobretudo tendo em vista os avanços científicos do século. Ele argumentava que a classe médica poderia contribuir para a saúde dos rapazes, “se ela não estivesse envenenada pelo dinheiro” – pois os doutores estavam estimulando os esportes violentos para lucrar com o aumento de pacientes. Ele culpava também a imprensa pela ruína dos jovens, pois com os “relatos minuciosos e repetitivos de feitos esportivos” e os “elogios aos campeões” ela “estimula os jogos violentos, como o foot-ball e outros, cujos malefícios são relatados por ela mesma”. No entanto, o jornalista defendia que médicos e imprensa ainda poderiam tornar-se forças favoráveis ao progresso, caso combatessem as forças maléficas, como “os vícios, as doenças, os esportes violentos, sobretudo o monstruoso foot-ball”.

Para defender sua tese antiesportiva, Doca dizia que o homem não é um animal de atividade muscular, mas um ser cerebral, voltado para a consciência. Por isso, o esgotamento físico é um entrave para a inteligência, haja vista a estreita correspondência entre fadiga corporal e fadiga intelectual. “Um cérebro fatigado possui uma consciência morta, nula, estéril.” Segundo ele, somente o repouso favorece o pensamento. “A fadiga é uma grande inimiga do cérebro e assassina do pensamento”. Doca lembrava que as grandes criações da humanidade foram fruto de pensamento em ambiente tranqüilo, como os laboratórios. “Que seria da sociedade se esta fosse composta somente de corredores fatigados? Estaríamos engolfados no atraso, na miséria física e moral”.

Doca defendia que o homem é por natureza um “animal imóvel”, “frágil”, características que nos diferenciam da besta: “Que importância tem a nossa carreira ante a agilidade diabólica dos animais inferiores, da prodigiosa desenvoltura da serpente, do galope, do cavalo, do salto do leão, do vôo da águia? Proporcionalmente, que vale a força humana ante a força da pulga? No entanto o homem é o mais temível dos animais.” De que adiantam os músculos, questionava, se o homem é um animal sociável, preparado viver pacificamente; se possui inteligência, que vale mais que a força? “A musculatura e a inteligência tem ambas a sua finalidade: aquela, em maior escala, para os animais dotados de garras e dentes afiadíssimos poderem exercer a sua missão triste e bestial; esta, para o homem viver a vida fraternal e transformar o mundo.”

Apesar da fúria, Orlando Ferreira sabia que seria esquecido. “Escrevo, porém, sob a mais dolorosa das impressões: a do desânimo. Ninguém, tenho certeza absoluta, se importará com as minhas palavras, que talvez poderão ter méritos apenas: o de aumentar o número de meus rancorosos inimigos.” Mas ao nos lembrarmos de Forja de Anões em pleno século 21, fica aí a viva provocação de Doca aos novos entusiastas do futebol.