Monday, July 17, 2006

Dois parágrafos na História de Minas

André Azevedo da Fonseca



Foi lançado no XV Encontro Regional de História, que ocorreu de 10 a 15 de julho de 2006 em São João Del Rey, o livro História de Minas Gerais (Ed. Lê, 2005), de Helena Guimarães Campos e Ricardo de Moura Faria. Segundo os autores, a obra procura suprir a carência de estudos sobre “a totalidade histórica” de Minas. Eles criticam o fato de que a diversidade regional no Estado nunca é contemplada pelas produções históricas e, assim, a obra é anunciada como “indispensável a todos aqueles que desejam conhecer a realidade mineira”.

Pois bem. Consultando o livro, observamos que nas suas 255 páginas há apenas dois parágrafos dedicados ao Triângulo (p.91); ambos equivocados e pitorescos, pois os autores confundem-se em datas e persistem naquela lenda boba que atribui a transferência da região à Minas Gerais a um caso de amor envolvendo Dona Beija. E só. Os pesquisadores sequer consultaram os memorialistas Borges Sampaio ou Hidelbrando Pontes, referências básicas da história da região, que não constam da bibliografia da obra. Para se ter idéia, em todo o livro não existe nenhuma menção ao Desemboque – o berço de dezenas de cidades triangulinas.

A despeito dos vários movimentos de emancipação presentes na política regional, duas frases apenas mencionam o tema: “Apesar de alguns pareceres favoráveis da anexação do Triângulo à São Paulo, em 1816 a região tornou-se mineira” (p.91) e “as intenções manifestadas mais tarde de desagregar do território mineiro as regiões do Triângulo e o Nordeste (...) também não tiveram êxito.” (p.143-4). E pronto. O Triângulo aparece de relance quando se fala das populações mineiras (p.119) e quando é feita uma alusão a um caso pitoresco de um “carro blindado improvisado” na resistência aos paulistas na revolução de 30 (p.155). E só.

Em História de Minas Gerais, Uberaba é citada apenas em um trecho sobre um ovo de titanossauro que foi encontrado em 1946 (p. 14). Peirópolis não é mencionada. Mais à frente há um parágrafo sobre o Zebu em Uberaba (p.169). Uberlândia – a terceira maior cidade do Estado – é citada apenas uma vez em todo o livro, quando os autores dizem que “outras cidades” mineiras também cresceram em 1970 (p.179). Quando menciona a figura de Chico Xavier na religiosidade mineira, não o localiza em Uberaba (p.219). Não há uma menção sequer a Araguari, Sacramento, Frutal, Ituiutaba e demais cidades da região. O livro pincela uma série de escritores mineiros (p.223), mas “se esquece” de autores da estatura de Mário Palmério e Campos de Carvalho. Juntando tudo, a história do Triângulo Mineiro, não preenche meia página de texto de História de Minas Gerais. É como se não existíssemos. É como se não tivéssemos história.

O livro não traz novidades, pois é todo baseado em pesquisa bibliográfica em teses, dissertações e obras já publicadas sobre a história mineira. Contudo, a produção historiográfica sobre o Triângulo é volumosa: somente neste encontro em São João Del Rey estão sendo apresentadas mais de 40 pesquisas. Então, por que esse esquecimento?

Sabemos que, há anos, a resposta a esse enigma esteve na ponta da língua de muitos políticos e intelectuais emancipacionistas da região: – Ora, porque o Triângulo nunca foi mineiro! Porque o Triângulo não é Minas. Mas agora é curioso observar que quem confirma essa impressão são as próprias lacunas de História de Minas Gerais.

Wednesday, July 05, 2006

Combate ao simpático nepotista

André Azevedo da Fonseca

Nepotistas nem sempre são canalhas convictos. Quando observamos seus esforços para justificar a nomeação de parentes em cargos públicos, percebemos em alguns deles uma sincera opinião de que aquilo que fazem é perfeitamente legítimo. O nepotista tradicional, defensor dos bons costumes, jamais se considera um imoral; ao contrário dos cínicos, ele acredita, de todo o coração, que não há nada de errado em encaixar a esposa, o filho ou o cunhado no serviço municipal, designando seus auxiliares através dos critérios da intimidade pessoal. Assim, para examinarmos essa prática tão enraizada em nossa cultura, parece interessante iluminá-la com um termo sociológico de grande força explicativa: o conceito de “homem cordial”, desenvolvido por Sérgio Buarque de Holanda, em um livro que, não por acaso, chama-se Raízes do Brasil.

O termo “cordial”, tal como empregado, não se refere à idéia de polidez e de boa educação. Cordial está ligado etimologicamente à palavra cordis, que em latim significa coração. Ou seja, o homem cordial é aquele que pensa e age com o coração. Seja de forma afetuosa, seja de forma intempestiva, o cordial é incapaz de estabelecer, no espaço público, outras modalidades de relações que não aquelas baseadas nos delicados laços de intimidade que regem a vida privada.

Nas relações de trabalho, o homem cordial não consegue instituir um convívio profissional com os colegas ou com patrão. O cordial só é capaz de relacionar-se através de alianças emocionais. Dessa forma, em vez de ordenar-se em um ambiente fundamentado pelo coleguismo, o cordial procura ligar-se aos outros através de relações pessoais de intimidade – o que pressupõe sentimentos como amizade e benevolência, mas também inimizade e ódio. Assim, as relações profissionais, que deveriam pressupor metas e objetivos alcançados através de disciplina e civilidade nas relações, acabam se consumindo em todo tipo de fervores passionais. O ambiente de trabalho se esvazia da necessária impessoalidade e se enche de “amigos”, “inimigos”, “protegidos” e “desafetos”. Conseqüentemente, os critérios de avaliação profissional deixam de considerar a competência e o talento para valorizar unicamente os pactos de estima pessoal.

Ao projetar na vida pública essa lógica da convivência íntima familiar, o cordial confunde os espaços público e privado e passa a apropriar-se do público como se este fosse o seu território particular. E aí está um dos elementos responsáveis pelo atraso nas instituições brasileiras, e que explica também a moral familiar e anti-social do corrupto. Max Weber percebeu que, ao contrário do que diziam os positivistas, o Estado não é a continuação da família. Na verdade, o Estado moderno se funda exatamente com a superação dos valores da moral familiar através da conduta ética impessoal na sociedade. E é justamente por isso que a simpática tradição do nepotista é tão nefasta para a cidade e para o país. Enquanto as alianças familiares e os laços de amizade permanecerem garantindo cargos no serviço público, desencorajando com isso o talento, a competência e o esforço pela formação profissional, permaneceremos um país cordial, mas atrasado, injusto e corrupto.