Thursday, June 29, 2006

Em quem "não" votar

André Azevedo da Fonseca

Desde o começo do ano os eleitores da cidade andam recebendo piscadelas de políticos que decidiram passar a perna nos eventuais adversários e anteciparam, por conta própria, o período de promoção pessoal da campanha eleitoral. De forma maliciosa, inventando ambigüidades e interpretando a lei com manha e malícia, eles anunciam a si mesmos em outdoors, folders, panfletos, encartes de jornal e, em um desrespeito à nossa inteligência, insistem em mentir que essa autopromoção é um “serviço” ao povo.

Vamos ser claros e diretos: essa prática é ilegal, antiética, traiçoeira e cínica, pois todos os envolvidos nesse jogo – cidadãos, eleitores, políticos e assessores de comunicação – sabem muito bem que essas peças publicitárias pseudo-informativas não são nada mais que campanha de autopromoção com vistas às eleições. Ninguém é ingênuo. A cidade deve discutir essa questão com seriedade, pois aí estão em jogo importantes ideais democráticos.

Regras eleitorais são feitas, entre outras coisas, para que todos os candidatos tenham igualdade de condições na divulgação de seu programa e na conquista do voto. Ou seja, para haver lealdade democrática, o período de propaganda eleitoral deve ser o mesmo para todos. Quem ganha com esse princípio é a própria sociedade, pois somente conhecendo todos por igual é possível haver ampla liberdade de escolha.

Políticos que dissimulam e antecipam a campanha têm a conduta egoísta daqueles trapaceiros que furam fila para tirar proveito sobre os honestos que respeitam o lugar de cada um. Essa velhacaria é igual à do personagem “Dick Vigarista”, que nas corridas de carro, no desenho animado, largava antes dos outros, tramava emboscadas e se enfiava em atalhos na pista para chegar primeiro, pois o importante era ganhar de qualquer maneira. Eles são como lutadores malandros que, escondidos do juiz, socam o adversário antes do apito inicial para começar o jogo na vantagem. Políticos que burlam a lei para faturar benefícios pessoais não merecem confiança, pois isso demonstra o caráter antidemocrático e fraudulento de sua conduta pública.

Não nos deixemos enganar por candidatos mesquinhos que agem de má-fé, abusam de nossa confiança e insultam nossa inteligência. A campanha ainda não começou; por isso, ainda não podemos escolher os nossos candidatos. Mas diante desses patifes eleitorais, já podemos pelo menos escolher em quem “não” votar. E para apontá-los, nem é preciso dizer os nomes deles neste espaço. Todos sabemos quem são: há meses eles estão em plena campanha eleitoral.

Thursday, June 22, 2006

Pântano Sagrado

André Azevedo da Fonseca



Nas últimas semanas a comunidade católica uberabense tem se rejubilado com o centenário de Dom Alexandre (1906-2002), o primeiro arcebispo da cidade. Mas ao evocar a trajetória do famoso clérigo, esqueceram de mencionar aquele personagem que foi o avesso dessa moeda: trata-se de Orlando Ferreira (1886-1957), o “Doca”, livre-pensador, autor de livros banidos na cidade, como Terra Madrasta (1928), Ilusões Capitalistas (1932), Forja de Anões (1940) e Pântano Sagrado (1948).

Em um tempo onde as rixas eram resolvidas na espingarda de matadores a mando de coronéis, Doca foi um crítico agressivo das oligarquias locais, do clero e demais ordens conservadoras da cidade. Em Terra Madrasta, ao lastimar-se do atraso dos “infelizes uberabenses” dos anos 20, fez questão de pontuar as forças que, segundo ele, se opunham ao progresso de Uberaba: “1) A administração. 2) A política. 3) O clero. 4) A Empresa Força e Luz. 5) A família Borges. 6) A família Prata. 7) A família Rodrigues da Cunha.” Para ele, Uberaba não era a princesa do sertão, mas a “mucama do sertão”.

Através de cartas anônimas e sobretudo com a publicação de Pântano Sagrado, Doca insurgiu-se contra a igreja, pois ele considerava que o obscurantismo do clero era “nefasto”. Em Uberaba, por exemplo, o “Círculo Católico”, liderado a partir de 1912 pelo monarquista João Teixeira Alves, atacava comunistas e espíritas, incentivando a polícia a fechar escolas e centros kardecistas. Em 1924, por pressão da igreja, a Câmara revogara uma autorização para o funcionamento de uma escola protestante em Uberaba, que acabou sendo instalada em Juiz de Fora. O Correio Católico, jornal fundado por Dom Alexandre, difamava o espiritismo e o socialismo enquanto pregava os valores católicos. Tudo isso inflamava ainda mais o espírito anticlerical de Orlando Ferreira.

Incendiado por ideais comunistas, Doca dizia que a igreja, em vez de lutar por melhorias sociais concretas, mandava o povo rezar... Ele procurava fazer distinção entre catolicismo e cristianismo, e dizia que Jesus Cristo, “filho de operários”, era um “verdadeiro revolucionário” que pregava o comunismo para todos os povos. Contra o que chamava de “falso cristianismo dos hipócritas”, dizia que o amor cristão deveria ser posto em prática e não apenas ser objeto de palavras. “Um sujeito qualquer é muito bonzinho, veste batina, fala de Deus e abençoa, mas odeia, excomunga e gosta de dinheiro? Demônio!”. Doca chamava Pio XII de “monstro do Vaticano” e dizia que as perseguições da igreja de D. Alexandre às outras religiões era a “inquisição moderna”.

Doca foi forçado a “retratar-se” nos jornais por suas “idéias errôneas”, passou a ser tido como louco e foi banido da história de Uberaba. Mas as polêmicas entre Dom Alexandre e Orlando Ferreira são fontes preciosas para interpretar a Uberaba daquele período. Assim, o avesso da moeda também deve ser comemorado: lembrar-se de Dom Alexandre é lembrar-se também de seu mais destemido inimigo, o Doca.

Wednesday, June 21, 2006

Praça Nestor Alves Ribeiro

André Azevedo da Fonseca



Nestor Alves Ribeiro foi o sujeito mais popular do centro da cidade no final do século XX. Todo santo dia ele acordava bem cedo, lia os jornais, pendurava meia dúzia de crachás na camisa, pegava o Cássio Rezende e descia na Praça Rui Barbosa. Seu Nestor postava-se então em frente ao ponto de ônibus, arregalava os olhos e desembestava-se em longos e labirínticos discursos, expelindo toda a sua indignação contra a estupidez dos políticos. No fim da tarde, pegava o coletivo e continuava discursando até descer no ponto próximo à sua casa, no bairro Santa Marta.

Em seus delírios, seu Nestor considerava-se um político importante. No entanto, andava de ônibus e fazia questão de pagar a passagem – mesmo tendo o direito de, por causa da idade, obter passe-livre. Ele dizia que “homem público tem o dever de pagar suas despesas”. Seu Nestor já morreu há cinco anos; mas algum romântico já sugeriu que, lá no centro da cidade, se atentarmos os ouvidos, ainda podemos ouvir, bem baixinho, um eco de sua voz, dizendo coisas como: “Homens públicos deveriam apenas usar serviço público, porque assim sentiriam na pele o atendimento que a população recebe. Todo político deveria ser proibido de andar em carro próprio. Se o transporte público não presta para ele, porque presta para a população?”

Que tal? Imagine a revolução na qualidade dos serviços públicos se os políticos fosse obrigados, por lei, a usá-los quando necessitassem de atendimento! Já pensou? Imagine o prefeito Anderson Adauto na fila do postinho mais próximo para tratar sua dengue, porque estaria proibido, por ser o chefe do executivo, de consultar um médico particular? Imagine o Tony Carlos, o Borjão e outros vereadores chegando na Câmara pontualmente, de ônibus, tendo que comprar vale-transportes com dinheiro do bolso? “Filhos de políticos deveriam ser obrigados a freqüentar grupos escolares”, continua a sussurrar a alucinada alma penada de Nestor.

Nosso orador dizia também que “muitos dos vereadores que lá estão não deveriam estar lá, porque entraram sem prestar concurso público”. Uma beleza, não? Imagine se os políticos fossem obrigados a fazer um exame de qualificação, com questões sobre a história da cidade, sobre a geografia dos bairros e sobre a lei orgânica do município. “Se até para dirigir um carro temos que fazer prova de legislação, para dirigir a cidade seria preciso muito mais provas!”, diria seu Nestor.

A área central de Uberaba era conhecida no século XIX como “Largo da Matriz”, mas depois foi rebatizada como “Praça Rui Barbosa” para homenagear o célebre baiano republicano. Agora, no século XXI, está chegando a hora de festejar o cidadão uberabense que mais politizou a praça no final do século XX, transformando o centro da cidade em um local de discussão pública. Logradouros cumprem papéis históricos, e o nome atual da praça já deu o que tinha que dar. Portanto, uberabenses: uni-vos! Que praça Rui Barbosa que nada! Viva a praça Nestor Alves Ribeiro!

O centenário do “Camarada Lorotoff”

Jornalista Eduardo Palmério satirizou os costumes burgueses em milhares de artigos na imprensa brasileira

André Azevedo da Fonseca



Neste dia 24 de maio, o jornalista Eduardo Palmério, o impagável crítico da burguesia paulista e carioca dos anos 40 a 60, completaria 100 anos. Irmão mais velho do escritor Mário Palmério, Eduardo nasceu na cidade de Sacramento, no Triângulo Mineiro, em 1906, mas no final da década de 10 mudou-se com a família para Uberaba. Na juventude foi morar no Rio de Janeiro para estudar Odontologia e ficou deslumbrado com a produção cultural carioca, manifestada sobretudo na imprensa da capital. De volta a Uberaba, seu entusiasmo pelos livros levou o jovem dentista a fundar a Livraria ABC, que nos anos seguintes tornou-se um movimentado ponto de encontro dos intelectuais uberabenses.

O combate a favor da leitura seria um tema sempre presente nas crônicas que viria a escrever na imprensa paulista. Em um artigo publicado na década de 40, Palmério manifestaria seu entusiasmo perante o fato de que os livros custavam relativamente pouco naquela época. “Pode-se morrer de fome no Brasil por falta de dinheiro para comprar comidas, mas ninguém morre de burrice por falta de dinheiro para comprar livros”, dizia. Para demonstrar sua tese, Palmério comparou alguns preços: “Um romance de Eça de Queiroz vale bem mais do que um quilo de bacalhau, e custa bem menos”, contabilizava, lembrando também que era possível encontrar, nos sebos paulistas, livros de Jorge Amado pelo custo de “dois palmos de lingüiça” e cartilhas escolares pelo preço de um maço de cigarros. Para ele, o problema era que as pessoas, em geral, não davam valor aos livros. O próprio político mineiro Benedito Valadares, ironizava, era desses que não entrava em livraria nem para se esconder da chuva. Sua conclusão para esse caso é antológica: “Ninguém é burro por falta de dinheiro, – a maioria o é por excesso...”

Ainda em Uberaba, na década de 20, o animado Eduardo Palmério já escrevia regularmente nos jornais locais, como o Lavoura & Comércio, O Triângulo e o Correio Católico. Ele chegou a fundar seu próprio periódico, mas era uma coisa pequena, e não foi para frente. Somente após 1943, quando mudou-se definitivamente para São Paulo, é que passou a dedicar-se integralmente ao jornalismo.

Eduardo Palmério tornou-se um comentarista deliciosamente satírico ao refletir sobre os costumes de granfinos, empresários e políticos em suas colunas. Talvez mais por diversão do que por algum receio em assinar seus textos, Palmério passou a adotar vários pseudônimos. O mais famoso deles era “Camarada Lorotoff”, uma dupla zombaria com a retórica anti-comunista e ao mesmo tempo com a lorota comunista. Com esse pseudônimo, Palmério publicou, em 1948, o livro “A Grande Mamata”, uma série de reportagens hilárias sobre a indústria do leite.

No ano seguinte, reuniu seus melhores artigos e publicou a antologia “100 comentários”. Em 1951 lançou “Solteiros no civil e no religioso”, seu primeiro romance, todo encenado no ambiente característico dos jornais paulistanos da velha guarda. Eduardo Palmério lançaria ainda, pela editora José Olympio, o romance “A noite é nossa”, sempre com aquele espírito bolchevista anárquico, atento ao ridículo das convenções e das máscaras sociais que procuram maquiar a violência das injustiças na sociedade.

Eduardo Palmério continuou escrevendo e publicando até as vésperas de sua morte, no dia 4 de janeiro de 1976, aos 69 anos de idade. Uma das grandes características de toda a sua carreira jornalística foi o caráter eminentemente ético de seus artigos. Em seus textos satíricos fica evidente a crítica social e o esforço para se pensar uma nova ordem para o Brasil. E para não deixar dúvidas sobre o propósito de sua produção intelectual, essa disposição ficou registrada pelo próprio autor, no prefácio que ele mesmo escreveu para um de seus livros:

“Afirmam os homens ‘sensatos’ que é perigoso mudar a ordem natural das coisas. Mas pergunto: essa ordem é natural? Acredito que, no desejo de melhorar nossas condições particulares ou gerais, toda insensatez é perfeitamente justificada. Mais vale errar por conta própria do que deixar que acertem por nós.”

Este foi o Camarada Lorotoff!

Por uma nova história do povo de Uberaba

André Azevedo da Fonseca



A história do povo de Uberaba foi raptada, encarcerada e passa fome. Nunca contaram nossa história. Quando procuramos nos livros, encontramos sempre as mesmas referências a duas dúzias de figurões que, pelo único mérito de terem sobrenomes, deixaram registradas a sua ilustre presença nos cargos honoríficos que seus próprios compadres os levaram. Não é à toa que a população em geral ignora essa história. De fato, ela não nos diz respeito.

Mas felizmente novos estudos caminham para uma mudança radical dessa perspectiva. Cada vez mais os historiadores têm concentrado a atenção nas pessoas comuns, em vez de estudar apenas a história dos dirigentes. Essa abordagem baseia-se na idéia de que a dinâmica de uma cidade não é movida apenas pelo Estado ou pela economia, mas por toda a sociedade, formada por pessoas como nós, que trabalhamos em nossos empregos, relacionamo-nos uns com os outros e simplesmente vivemos as nossas vidas.

Toda essa complexidade social é o grande tema de pesquisas atuais. Há tempos foi abandonada a idéia de biografia dos “grandes líderes”, pois percebe-se que estes não têm em si todos os elementos para explicar as transformações de seu povo. É claro que, nas democracias modernas, essas figuras representam anseios que na verdade são coletivos. Mas aprisionar a História à vida dos dirigentes, como se apenas eles fossem agentes históricos, é um princípio que contraria a própria lógica democrática.

Sabe-se que a ação individual de homens e mulheres é muito pouco perante as forças do contexto no qual estão inseridos. Ao contrário do que os políticos profissionais e seus assessores costumam pregar para justificar sua existência, transformações sociais nunca são resultados de atos individuais, mas dependem de uma série de pré-condições que a sociedade como um todo impõe através da imprensa, das associações, dos sindicatos e das manifestações públicas. Além disso, como ensina o historiador Paul Veyne, para compreender a sociedade é preciso observar todos aqueles elementos chamados “não-factuais”, os pequenos acontecimentos diluídos no cotidiano, cuja importância social não é percebida imediatamente. Eventos históricos acontecem todos os dias, mas como ocorrem sutilmente em nosso cotidiano, nem sempre nos damos conta de sua relevância.

Se queremos entender como a cidade se tornou o que é, não devemos estudar apenas uma exceção de cidadãos que ocuparam cargos públicos. Essas figuras excepcionais não vivenciam a mesma experiência que nós. Para interpretar a história de nossa gente, devemos olhar para a vida das pessoas comuns em suas contradições e diversidades.
Cada um de nós é um agente histórico de muita importância. Portanto, se quisermos realmente escrever a história dos uberabenses, precisamos nos libertar dos dirigentes para mergulhar diretamente nas vidas dos habitantes da cidade. Essa nova história de Uberaba ainda está para ser contada.