Wednesday, September 20, 2006

Todos contra Mário Palmério



André Azevedo da Fonseca

Neste dia 24 de setembro completam-se 10 anos da morte de Mário Palmério, uma figura emblemática para se compreender a história contemporânea do Triângulo. Nascido em Monte Carmelo, Palmério foi pioneiro na criação de instituições de ensino superior na região quando fundou, em 1947, a Faculdade de Odontologia – o embrião da atual Uniube. Suas faculdades trariam milhares de estudantes a Uberaba, transformariam a economia da cidade e promoveriam intenso intercâmbio regional. Em 1950, para o assombro das elites políticas locais, foi eleito deputado federal e tornou-se o principal líder trabalhista da região. Em 1956 escreveu Vila dos Confins, romance importante da moderna literatura brasileira, e virou celebridade nacional. Nos anos 60 foi embaixador, publicou Chapadão do Bugre e tornou-se imortal da Academia. Depois de morar 9 anos na Amazônia, participou ativamente da história de Uberaba como reitor da Uniube.

Contraditoriamente, talvez por seu temperamento tido como autoritário, arrogante e brigão, Palmério foi também uma das figuras mais detestadas de Uberaba. E essa histórica repulsa a Mário Palmério parece ter se tornado uma particularidade cultural nessa cidade que Orlando Ferreira chamou de Terra Madrasta. Mas ao pesquisar o contexto da política local nos anos 50 foi possível perceber quatro elementos da gênese dessa relação de amor e ódio que se desenvolveu no imaginário da cidade. Vejamos.

1) O Liceu do Triângulo, de Mário Palmério, foi nos anos 40 uma das raras escolas particulares que não eram ligadas ao catolicismo. Além disso, a igreja católica, que dominava o ensino privado, defendia que o Estado não deveria criar escolas públicas, mas sim apoiar iniciativas de ensino particular. Como a bandeira de Palmério na campanha de 1950 era a criação da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, os católicos passaram a expressar antipatia à plataforma do petebista. Mais tarde essa antipatia seria transferida também às suas faculdades, que passaram a ser chamadas de “tecnicistas” em comparação às universidades ligadas à igreja, tidas como “humanistas”.

2) Na campanha de 1950, o diretório local do PTB, liderado por Antônio Próspero e Mário Palmério, passou a disputar com o PSP, do prefeito Boulanger Pucci, quem recepcionaria Getúlio Vargas em Uberaba. Palmério e os petebistas venceram a disputa e humilharam Pucci. Mas na manhã em que Getúlio desembarcou, Pucci sofreu um atentado à tiros e imediatamente o PSP acusou nos jornais que o mandante era Mário Palmério. Essa foi a primeira de muitas calúnias motivadas por interesses eleitorais.

3) Nas eleições de 1958 o Correio de Uberlândia publicou editoriais dizendo que Mário Palmério era inimigo público nº 1 daquela cidade, pois nas campanhas anteriores ele prometera levar faculdades para a região, mas as instalava apenas em Uberaba. No entanto, o jornal pertencia a udenistas – logo, as críticas eram mais partidárias do que políticas. Além disso, Uberlândia contava com dois representantes na Câmara: Rondon Pacheco (UDN) e Vasconcelos Costa (PSP).

4) Ainda hoje corre à boca pequena em Uberaba que Mário Palmério não seria o autor de Vila dos Confins e teria pago alguém para escrever o livro. Essa difamação é fruto daquela mesma ardileza política, pois era muito difícil para os feudos partidários locais engolirem o sucesso literário nacional de um triangulino imbatível nas urnas. Assim, para desmerecê-lo, inventou-se a maledicência que ganhou livre curso entre aqueles que por algum motivo não gostavam de Mário Palmério.

Consta-se que Mário Palmério, depois de tudo, morreu magoado com Uberaba. Mas sabe-se também que vez ou outra ironizava essa aversão com uma frase antológica: – Não sei por que ele está com raiva de mim. Nunca fiz nenhum bem a ele...

Como conhecer o caráter dos candidatos?

André Azevedo da Fonseca

Períodos eleitorais tornaram-se um dos momentos mais despolitizados da vida em sociedade. O espetáculo publicitário onde os aspirantes a cargos públicos anunciam seus slogans não promove a cidadania, não conscientiza, não educa e não estimula o envolvimento efetivo da comunidade na política. Ao contrário, essas propagandas tendem a confundir os cidadãos; pois não importa o candidato, todas reproduzem as mesmas idéias genéricas sobre os mesmos temas, todas defendem os mesmos compromissos gerais referente aos mesmos programas e, o que é pior, todas personalizam a política, como se as conquistas sociais fossem obras exclusivas da atuação de um só sujeito. Isso é a contramão da democracia moderna, que fundamenta-se na participação cada vez maior da coletividade nas decisões de Estado.

Assim, sejamos claros: não é possível escolher os representantes com base em suas próprias campanhas publicitárias. Candidatos não falam nas propagandas que suas gestões anteriores estão sob suspeita; não explicam suas ligações com escândalos como o mensalão ou a máfia dos sanguessugas; não tornam claros os casos de corrupção que ocorreram sob sua administração; escondem que são indiciados como réus em processos na Justiça Federal, nos tribunais superiores, na Justiça Eleitoral ou nos Tribunais de Contas... a lista é longa.

Algum coisa nesse sentido podemos descobrir conferindo sites como o da ONG Transparência Brasil (http://www.transparencia.org.br), que possui um importante banco de dados sobre dezenas de políticos profissionais, contendo informações tais como a identidade dos doadores de campanha; o desempenho legislativo (incluindo faltas, uso de verbas de gabinete, etc); as menções publicadas na mídia quando aparecem ligados a casos de corrupção, além de outras informações relevantes. Outra boa fonte de pesquisa é o próprio site da Câmara Federal, onde é possível conferir, no endereço http://www2.camara.gov.br/proposicoes quais foram os projetos de lei realmente apresentados pelos deputados, se eles trabalharam mesmo ou se apenas estão fazendo propaganda enganosa em suas campanhas.

No entanto, há uma outra medida que é mais difícil de ser mensurada, mas que pode ser reveladora: sempre vale a pena conversar com empregadas domésticas, jardineiros, motoristas, secretárias ou ex-assessores e ex-funcionários para descobrir o que os políticos profissionais realmente falam no seu dia-a-dia. O que se diz é que, em geral, eles jamais falam em projetos para transformar a sociedade. Nunca conversam sobre formas institucionais de promover justiça social. Não fazem referências sobre mobilização política das comunidades para exigir melhorias sociais. Os únicos assuntos ditos “políticos” giram em torno das táticas partidárias de conquista do poder, da melhor forma de caluniar o adversário, da maneira mais eficaz de forjar uma imagem favorável na imprensa, nas vantagens em se apoiar este ou aquele político profissional, e a conversa fica por aí. É o poder pelo poder. Mais ou menos como descreveu Mário Palmério em Vila dos Confins.

Mas quem são esses sujeitos que de dois em dois anos saem às ruas nos pedindo um cargo público? O que eles realmente querem? Que tipo de prazer eles sentem sendo políticos profissionais? E o que essas pessoas entendem por “política”? O que entendem por “democracia”? E enfim, como conhecer, de verdade, o caráter dessas pessoas que nos pedem votos? Seria muito interessante, mas muito interessante mesmo, travar um debate sobre isso.

Friday, August 18, 2006

Lições da democracia grega

André Azevedo da Fonseca



Para esquentar o espírito de cidadania nesse início de campanha eleitoral, ocasião em que políticos gastam todo seu tempo prometendo que serão representantes fiéis da vontade dos eleitores, é muito interessante fazer uma reflexão sobre a democracia clássica ateniense. Lembremos que foram os gregos que inventaram não apenas a democracia, mas também a política, entendida como “a arte de decidir através da discussão pública”.

Em Atenas os cidadãos viviam sob um regime de democracia “direta”, e não “representativa”, como nós. A Assembléia, um verdadeiro comício ao ar livre, era aberta a qualquer interessado. Em princípio, todos os presentes tinham o direito de tomar a palavra: a isegoria – o direito universal de falar na Assembléia – era algumas vezes empregado como sinônimo de democracia.

A Assembléia se reunia pelo menos quarenta vezes durante o ano e geralmente chegava a uma decisão sobre determinado tema em um único dia de debate. As deliberações eram estabelecidas pelo voto da maioria simples daqueles que estivessem presentes. Todos os assuntos a serem votados eram discutidos antecipadamente no dia-a-dia da sociedade. As pessoas conversavam nas lojas, nas tavernas, na praça, nas mesas de jantar e, mais tarde, esses mesmos cidadãos se direcionavam à Assembléia para realizar a votação formal.

Para se ter uma idéia desse espírito democrático, consta-se que nem mesmo o grande general Péricles detinha o poder de decidir sozinho questões relativas à mobilização de tropas na guerra. Todas as suas propostas eram submetidas à votação; visões alternativas eram apresentadas e a decisão final era dos membros da Assembléia, e não de Péricles. Para os atenienses “o reconhecimento da liderança não era acompanhado por uma renúncia ao poder decisório”.

Quase não havia burocracia ou funcionários públicos. A administração era partilhada entre um grande número de cargos anuais e um conselho de 500 cidadãos escolhidos por sorteio. Isso mesmo: através de sorteio eram escolhidos os membros, que não recebiam qualquer remuneração. Consta-se que no século V a.C. funcionários públicos, membros do conselho e jurados recebiam um pequeno per diem – valor menor do que o pagamento diário de um pedreiro. A participação na vida pública por sorteio indica que grande parte dos cidadãos necessariamente tinha alguma experiência direta no governo. Nem os apáticos escapavam da vida em comunidade. Ou seja, ao contrário do atual modelo de democracia, em Atenas a direção do Estado não era um monopólio dos chamados políticos profissionais: todos os cidadãos tinham direito de exercer a política.

A idéia da democracia direta mostra que nosso modelo político ainda pode ser radicalmente transformado através de reformas profundas. Há estudiosos insuspeitos, como o historiador Moses Finley, que defendem a viabilidade do modelo direto aos tempos atuais. Afinal, não devemos nos esquecer que, sob esse sistema, Atenas foi o Estado mais próspero, poderoso, estável e culto do mundo grego por mais de dois séculos. Lembremo-nos dos gregos.

Thursday, August 03, 2006

Os males do monstruoso foot-ball

André Azevedo da Fonseca



Nesta ressaca de Copa de Mundo, não podemos deixar de nos lembrar mais uma vez de Orlando Ferreira (1886-1957), conhecido como “Doca”, o mais atrevido jornalista uberabense do século 20. Para quem não sabe, em 1940 o desbocado comunista irrompeu sua notória fúria “contra tudo e contra todos” em direção a uma das maiores paixões nacionais: o esporte. Trata-se do livro Forja de Anões, um libelo contra o que considerava a maior anomalia da cultura brasileira: o gosto pelo jogo de bola.

Doca lamentava a visível “decadência física da mocidade”, sobretudo tendo em vista os avanços científicos do século. Ele argumentava que a classe médica poderia contribuir para a saúde dos rapazes, “se ela não estivesse envenenada pelo dinheiro” – pois os doutores estavam estimulando os esportes violentos para lucrar com o aumento de pacientes. Ele culpava também a imprensa pela ruína dos jovens, pois com os “relatos minuciosos e repetitivos de feitos esportivos” e os “elogios aos campeões” ela “estimula os jogos violentos, como o foot-ball e outros, cujos malefícios são relatados por ela mesma”. No entanto, o jornalista defendia que médicos e imprensa ainda poderiam tornar-se forças favoráveis ao progresso, caso combatessem as forças maléficas, como “os vícios, as doenças, os esportes violentos, sobretudo o monstruoso foot-ball”.

Para defender sua tese antiesportiva, Doca dizia que o homem não é um animal de atividade muscular, mas um ser cerebral, voltado para a consciência. Por isso, o esgotamento físico é um entrave para a inteligência, haja vista a estreita correspondência entre fadiga corporal e fadiga intelectual. “Um cérebro fatigado possui uma consciência morta, nula, estéril.” Segundo ele, somente o repouso favorece o pensamento. “A fadiga é uma grande inimiga do cérebro e assassina do pensamento”. Doca lembrava que as grandes criações da humanidade foram fruto de pensamento em ambiente tranqüilo, como os laboratórios. “Que seria da sociedade se esta fosse composta somente de corredores fatigados? Estaríamos engolfados no atraso, na miséria física e moral”.

Doca defendia que o homem é por natureza um “animal imóvel”, “frágil”, características que nos diferenciam da besta: “Que importância tem a nossa carreira ante a agilidade diabólica dos animais inferiores, da prodigiosa desenvoltura da serpente, do galope, do cavalo, do salto do leão, do vôo da águia? Proporcionalmente, que vale a força humana ante a força da pulga? No entanto o homem é o mais temível dos animais.” De que adiantam os músculos, questionava, se o homem é um animal sociável, preparado viver pacificamente; se possui inteligência, que vale mais que a força? “A musculatura e a inteligência tem ambas a sua finalidade: aquela, em maior escala, para os animais dotados de garras e dentes afiadíssimos poderem exercer a sua missão triste e bestial; esta, para o homem viver a vida fraternal e transformar o mundo.”

Apesar da fúria, Orlando Ferreira sabia que seria esquecido. “Escrevo, porém, sob a mais dolorosa das impressões: a do desânimo. Ninguém, tenho certeza absoluta, se importará com as minhas palavras, que talvez poderão ter méritos apenas: o de aumentar o número de meus rancorosos inimigos.” Mas ao nos lembrarmos de Forja de Anões em pleno século 21, fica aí a viva provocação de Doca aos novos entusiastas do futebol.

Monday, July 17, 2006

Dois parágrafos na História de Minas

André Azevedo da Fonseca



Foi lançado no XV Encontro Regional de História, que ocorreu de 10 a 15 de julho de 2006 em São João Del Rey, o livro História de Minas Gerais (Ed. Lê, 2005), de Helena Guimarães Campos e Ricardo de Moura Faria. Segundo os autores, a obra procura suprir a carência de estudos sobre “a totalidade histórica” de Minas. Eles criticam o fato de que a diversidade regional no Estado nunca é contemplada pelas produções históricas e, assim, a obra é anunciada como “indispensável a todos aqueles que desejam conhecer a realidade mineira”.

Pois bem. Consultando o livro, observamos que nas suas 255 páginas há apenas dois parágrafos dedicados ao Triângulo (p.91); ambos equivocados e pitorescos, pois os autores confundem-se em datas e persistem naquela lenda boba que atribui a transferência da região à Minas Gerais a um caso de amor envolvendo Dona Beija. E só. Os pesquisadores sequer consultaram os memorialistas Borges Sampaio ou Hidelbrando Pontes, referências básicas da história da região, que não constam da bibliografia da obra. Para se ter idéia, em todo o livro não existe nenhuma menção ao Desemboque – o berço de dezenas de cidades triangulinas.

A despeito dos vários movimentos de emancipação presentes na política regional, duas frases apenas mencionam o tema: “Apesar de alguns pareceres favoráveis da anexação do Triângulo à São Paulo, em 1816 a região tornou-se mineira” (p.91) e “as intenções manifestadas mais tarde de desagregar do território mineiro as regiões do Triângulo e o Nordeste (...) também não tiveram êxito.” (p.143-4). E pronto. O Triângulo aparece de relance quando se fala das populações mineiras (p.119) e quando é feita uma alusão a um caso pitoresco de um “carro blindado improvisado” na resistência aos paulistas na revolução de 30 (p.155). E só.

Em História de Minas Gerais, Uberaba é citada apenas em um trecho sobre um ovo de titanossauro que foi encontrado em 1946 (p. 14). Peirópolis não é mencionada. Mais à frente há um parágrafo sobre o Zebu em Uberaba (p.169). Uberlândia – a terceira maior cidade do Estado – é citada apenas uma vez em todo o livro, quando os autores dizem que “outras cidades” mineiras também cresceram em 1970 (p.179). Quando menciona a figura de Chico Xavier na religiosidade mineira, não o localiza em Uberaba (p.219). Não há uma menção sequer a Araguari, Sacramento, Frutal, Ituiutaba e demais cidades da região. O livro pincela uma série de escritores mineiros (p.223), mas “se esquece” de autores da estatura de Mário Palmério e Campos de Carvalho. Juntando tudo, a história do Triângulo Mineiro, não preenche meia página de texto de História de Minas Gerais. É como se não existíssemos. É como se não tivéssemos história.

O livro não traz novidades, pois é todo baseado em pesquisa bibliográfica em teses, dissertações e obras já publicadas sobre a história mineira. Contudo, a produção historiográfica sobre o Triângulo é volumosa: somente neste encontro em São João Del Rey estão sendo apresentadas mais de 40 pesquisas. Então, por que esse esquecimento?

Sabemos que, há anos, a resposta a esse enigma esteve na ponta da língua de muitos políticos e intelectuais emancipacionistas da região: – Ora, porque o Triângulo nunca foi mineiro! Porque o Triângulo não é Minas. Mas agora é curioso observar que quem confirma essa impressão são as próprias lacunas de História de Minas Gerais.

Wednesday, July 05, 2006

Combate ao simpático nepotista

André Azevedo da Fonseca

Nepotistas nem sempre são canalhas convictos. Quando observamos seus esforços para justificar a nomeação de parentes em cargos públicos, percebemos em alguns deles uma sincera opinião de que aquilo que fazem é perfeitamente legítimo. O nepotista tradicional, defensor dos bons costumes, jamais se considera um imoral; ao contrário dos cínicos, ele acredita, de todo o coração, que não há nada de errado em encaixar a esposa, o filho ou o cunhado no serviço municipal, designando seus auxiliares através dos critérios da intimidade pessoal. Assim, para examinarmos essa prática tão enraizada em nossa cultura, parece interessante iluminá-la com um termo sociológico de grande força explicativa: o conceito de “homem cordial”, desenvolvido por Sérgio Buarque de Holanda, em um livro que, não por acaso, chama-se Raízes do Brasil.

O termo “cordial”, tal como empregado, não se refere à idéia de polidez e de boa educação. Cordial está ligado etimologicamente à palavra cordis, que em latim significa coração. Ou seja, o homem cordial é aquele que pensa e age com o coração. Seja de forma afetuosa, seja de forma intempestiva, o cordial é incapaz de estabelecer, no espaço público, outras modalidades de relações que não aquelas baseadas nos delicados laços de intimidade que regem a vida privada.

Nas relações de trabalho, o homem cordial não consegue instituir um convívio profissional com os colegas ou com patrão. O cordial só é capaz de relacionar-se através de alianças emocionais. Dessa forma, em vez de ordenar-se em um ambiente fundamentado pelo coleguismo, o cordial procura ligar-se aos outros através de relações pessoais de intimidade – o que pressupõe sentimentos como amizade e benevolência, mas também inimizade e ódio. Assim, as relações profissionais, que deveriam pressupor metas e objetivos alcançados através de disciplina e civilidade nas relações, acabam se consumindo em todo tipo de fervores passionais. O ambiente de trabalho se esvazia da necessária impessoalidade e se enche de “amigos”, “inimigos”, “protegidos” e “desafetos”. Conseqüentemente, os critérios de avaliação profissional deixam de considerar a competência e o talento para valorizar unicamente os pactos de estima pessoal.

Ao projetar na vida pública essa lógica da convivência íntima familiar, o cordial confunde os espaços público e privado e passa a apropriar-se do público como se este fosse o seu território particular. E aí está um dos elementos responsáveis pelo atraso nas instituições brasileiras, e que explica também a moral familiar e anti-social do corrupto. Max Weber percebeu que, ao contrário do que diziam os positivistas, o Estado não é a continuação da família. Na verdade, o Estado moderno se funda exatamente com a superação dos valores da moral familiar através da conduta ética impessoal na sociedade. E é justamente por isso que a simpática tradição do nepotista é tão nefasta para a cidade e para o país. Enquanto as alianças familiares e os laços de amizade permanecerem garantindo cargos no serviço público, desencorajando com isso o talento, a competência e o esforço pela formação profissional, permaneceremos um país cordial, mas atrasado, injusto e corrupto.

Thursday, June 29, 2006

Em quem "não" votar

André Azevedo da Fonseca

Desde o começo do ano os eleitores da cidade andam recebendo piscadelas de políticos que decidiram passar a perna nos eventuais adversários e anteciparam, por conta própria, o período de promoção pessoal da campanha eleitoral. De forma maliciosa, inventando ambigüidades e interpretando a lei com manha e malícia, eles anunciam a si mesmos em outdoors, folders, panfletos, encartes de jornal e, em um desrespeito à nossa inteligência, insistem em mentir que essa autopromoção é um “serviço” ao povo.

Vamos ser claros e diretos: essa prática é ilegal, antiética, traiçoeira e cínica, pois todos os envolvidos nesse jogo – cidadãos, eleitores, políticos e assessores de comunicação – sabem muito bem que essas peças publicitárias pseudo-informativas não são nada mais que campanha de autopromoção com vistas às eleições. Ninguém é ingênuo. A cidade deve discutir essa questão com seriedade, pois aí estão em jogo importantes ideais democráticos.

Regras eleitorais são feitas, entre outras coisas, para que todos os candidatos tenham igualdade de condições na divulgação de seu programa e na conquista do voto. Ou seja, para haver lealdade democrática, o período de propaganda eleitoral deve ser o mesmo para todos. Quem ganha com esse princípio é a própria sociedade, pois somente conhecendo todos por igual é possível haver ampla liberdade de escolha.

Políticos que dissimulam e antecipam a campanha têm a conduta egoísta daqueles trapaceiros que furam fila para tirar proveito sobre os honestos que respeitam o lugar de cada um. Essa velhacaria é igual à do personagem “Dick Vigarista”, que nas corridas de carro, no desenho animado, largava antes dos outros, tramava emboscadas e se enfiava em atalhos na pista para chegar primeiro, pois o importante era ganhar de qualquer maneira. Eles são como lutadores malandros que, escondidos do juiz, socam o adversário antes do apito inicial para começar o jogo na vantagem. Políticos que burlam a lei para faturar benefícios pessoais não merecem confiança, pois isso demonstra o caráter antidemocrático e fraudulento de sua conduta pública.

Não nos deixemos enganar por candidatos mesquinhos que agem de má-fé, abusam de nossa confiança e insultam nossa inteligência. A campanha ainda não começou; por isso, ainda não podemos escolher os nossos candidatos. Mas diante desses patifes eleitorais, já podemos pelo menos escolher em quem “não” votar. E para apontá-los, nem é preciso dizer os nomes deles neste espaço. Todos sabemos quem são: há meses eles estão em plena campanha eleitoral.

Thursday, June 22, 2006

Pântano Sagrado

André Azevedo da Fonseca



Nas últimas semanas a comunidade católica uberabense tem se rejubilado com o centenário de Dom Alexandre (1906-2002), o primeiro arcebispo da cidade. Mas ao evocar a trajetória do famoso clérigo, esqueceram de mencionar aquele personagem que foi o avesso dessa moeda: trata-se de Orlando Ferreira (1886-1957), o “Doca”, livre-pensador, autor de livros banidos na cidade, como Terra Madrasta (1928), Ilusões Capitalistas (1932), Forja de Anões (1940) e Pântano Sagrado (1948).

Em um tempo onde as rixas eram resolvidas na espingarda de matadores a mando de coronéis, Doca foi um crítico agressivo das oligarquias locais, do clero e demais ordens conservadoras da cidade. Em Terra Madrasta, ao lastimar-se do atraso dos “infelizes uberabenses” dos anos 20, fez questão de pontuar as forças que, segundo ele, se opunham ao progresso de Uberaba: “1) A administração. 2) A política. 3) O clero. 4) A Empresa Força e Luz. 5) A família Borges. 6) A família Prata. 7) A família Rodrigues da Cunha.” Para ele, Uberaba não era a princesa do sertão, mas a “mucama do sertão”.

Através de cartas anônimas e sobretudo com a publicação de Pântano Sagrado, Doca insurgiu-se contra a igreja, pois ele considerava que o obscurantismo do clero era “nefasto”. Em Uberaba, por exemplo, o “Círculo Católico”, liderado a partir de 1912 pelo monarquista João Teixeira Alves, atacava comunistas e espíritas, incentivando a polícia a fechar escolas e centros kardecistas. Em 1924, por pressão da igreja, a Câmara revogara uma autorização para o funcionamento de uma escola protestante em Uberaba, que acabou sendo instalada em Juiz de Fora. O Correio Católico, jornal fundado por Dom Alexandre, difamava o espiritismo e o socialismo enquanto pregava os valores católicos. Tudo isso inflamava ainda mais o espírito anticlerical de Orlando Ferreira.

Incendiado por ideais comunistas, Doca dizia que a igreja, em vez de lutar por melhorias sociais concretas, mandava o povo rezar... Ele procurava fazer distinção entre catolicismo e cristianismo, e dizia que Jesus Cristo, “filho de operários”, era um “verdadeiro revolucionário” que pregava o comunismo para todos os povos. Contra o que chamava de “falso cristianismo dos hipócritas”, dizia que o amor cristão deveria ser posto em prática e não apenas ser objeto de palavras. “Um sujeito qualquer é muito bonzinho, veste batina, fala de Deus e abençoa, mas odeia, excomunga e gosta de dinheiro? Demônio!”. Doca chamava Pio XII de “monstro do Vaticano” e dizia que as perseguições da igreja de D. Alexandre às outras religiões era a “inquisição moderna”.

Doca foi forçado a “retratar-se” nos jornais por suas “idéias errôneas”, passou a ser tido como louco e foi banido da história de Uberaba. Mas as polêmicas entre Dom Alexandre e Orlando Ferreira são fontes preciosas para interpretar a Uberaba daquele período. Assim, o avesso da moeda também deve ser comemorado: lembrar-se de Dom Alexandre é lembrar-se também de seu mais destemido inimigo, o Doca.

Wednesday, June 21, 2006

Praça Nestor Alves Ribeiro

André Azevedo da Fonseca



Nestor Alves Ribeiro foi o sujeito mais popular do centro da cidade no final do século XX. Todo santo dia ele acordava bem cedo, lia os jornais, pendurava meia dúzia de crachás na camisa, pegava o Cássio Rezende e descia na Praça Rui Barbosa. Seu Nestor postava-se então em frente ao ponto de ônibus, arregalava os olhos e desembestava-se em longos e labirínticos discursos, expelindo toda a sua indignação contra a estupidez dos políticos. No fim da tarde, pegava o coletivo e continuava discursando até descer no ponto próximo à sua casa, no bairro Santa Marta.

Em seus delírios, seu Nestor considerava-se um político importante. No entanto, andava de ônibus e fazia questão de pagar a passagem – mesmo tendo o direito de, por causa da idade, obter passe-livre. Ele dizia que “homem público tem o dever de pagar suas despesas”. Seu Nestor já morreu há cinco anos; mas algum romântico já sugeriu que, lá no centro da cidade, se atentarmos os ouvidos, ainda podemos ouvir, bem baixinho, um eco de sua voz, dizendo coisas como: “Homens públicos deveriam apenas usar serviço público, porque assim sentiriam na pele o atendimento que a população recebe. Todo político deveria ser proibido de andar em carro próprio. Se o transporte público não presta para ele, porque presta para a população?”

Que tal? Imagine a revolução na qualidade dos serviços públicos se os políticos fosse obrigados, por lei, a usá-los quando necessitassem de atendimento! Já pensou? Imagine o prefeito Anderson Adauto na fila do postinho mais próximo para tratar sua dengue, porque estaria proibido, por ser o chefe do executivo, de consultar um médico particular? Imagine o Tony Carlos, o Borjão e outros vereadores chegando na Câmara pontualmente, de ônibus, tendo que comprar vale-transportes com dinheiro do bolso? “Filhos de políticos deveriam ser obrigados a freqüentar grupos escolares”, continua a sussurrar a alucinada alma penada de Nestor.

Nosso orador dizia também que “muitos dos vereadores que lá estão não deveriam estar lá, porque entraram sem prestar concurso público”. Uma beleza, não? Imagine se os políticos fossem obrigados a fazer um exame de qualificação, com questões sobre a história da cidade, sobre a geografia dos bairros e sobre a lei orgânica do município. “Se até para dirigir um carro temos que fazer prova de legislação, para dirigir a cidade seria preciso muito mais provas!”, diria seu Nestor.

A área central de Uberaba era conhecida no século XIX como “Largo da Matriz”, mas depois foi rebatizada como “Praça Rui Barbosa” para homenagear o célebre baiano republicano. Agora, no século XXI, está chegando a hora de festejar o cidadão uberabense que mais politizou a praça no final do século XX, transformando o centro da cidade em um local de discussão pública. Logradouros cumprem papéis históricos, e o nome atual da praça já deu o que tinha que dar. Portanto, uberabenses: uni-vos! Que praça Rui Barbosa que nada! Viva a praça Nestor Alves Ribeiro!

O centenário do “Camarada Lorotoff”

Jornalista Eduardo Palmério satirizou os costumes burgueses em milhares de artigos na imprensa brasileira

André Azevedo da Fonseca



Neste dia 24 de maio, o jornalista Eduardo Palmério, o impagável crítico da burguesia paulista e carioca dos anos 40 a 60, completaria 100 anos. Irmão mais velho do escritor Mário Palmério, Eduardo nasceu na cidade de Sacramento, no Triângulo Mineiro, em 1906, mas no final da década de 10 mudou-se com a família para Uberaba. Na juventude foi morar no Rio de Janeiro para estudar Odontologia e ficou deslumbrado com a produção cultural carioca, manifestada sobretudo na imprensa da capital. De volta a Uberaba, seu entusiasmo pelos livros levou o jovem dentista a fundar a Livraria ABC, que nos anos seguintes tornou-se um movimentado ponto de encontro dos intelectuais uberabenses.

O combate a favor da leitura seria um tema sempre presente nas crônicas que viria a escrever na imprensa paulista. Em um artigo publicado na década de 40, Palmério manifestaria seu entusiasmo perante o fato de que os livros custavam relativamente pouco naquela época. “Pode-se morrer de fome no Brasil por falta de dinheiro para comprar comidas, mas ninguém morre de burrice por falta de dinheiro para comprar livros”, dizia. Para demonstrar sua tese, Palmério comparou alguns preços: “Um romance de Eça de Queiroz vale bem mais do que um quilo de bacalhau, e custa bem menos”, contabilizava, lembrando também que era possível encontrar, nos sebos paulistas, livros de Jorge Amado pelo custo de “dois palmos de lingüiça” e cartilhas escolares pelo preço de um maço de cigarros. Para ele, o problema era que as pessoas, em geral, não davam valor aos livros. O próprio político mineiro Benedito Valadares, ironizava, era desses que não entrava em livraria nem para se esconder da chuva. Sua conclusão para esse caso é antológica: “Ninguém é burro por falta de dinheiro, – a maioria o é por excesso...”

Ainda em Uberaba, na década de 20, o animado Eduardo Palmério já escrevia regularmente nos jornais locais, como o Lavoura & Comércio, O Triângulo e o Correio Católico. Ele chegou a fundar seu próprio periódico, mas era uma coisa pequena, e não foi para frente. Somente após 1943, quando mudou-se definitivamente para São Paulo, é que passou a dedicar-se integralmente ao jornalismo.

Eduardo Palmério tornou-se um comentarista deliciosamente satírico ao refletir sobre os costumes de granfinos, empresários e políticos em suas colunas. Talvez mais por diversão do que por algum receio em assinar seus textos, Palmério passou a adotar vários pseudônimos. O mais famoso deles era “Camarada Lorotoff”, uma dupla zombaria com a retórica anti-comunista e ao mesmo tempo com a lorota comunista. Com esse pseudônimo, Palmério publicou, em 1948, o livro “A Grande Mamata”, uma série de reportagens hilárias sobre a indústria do leite.

No ano seguinte, reuniu seus melhores artigos e publicou a antologia “100 comentários”. Em 1951 lançou “Solteiros no civil e no religioso”, seu primeiro romance, todo encenado no ambiente característico dos jornais paulistanos da velha guarda. Eduardo Palmério lançaria ainda, pela editora José Olympio, o romance “A noite é nossa”, sempre com aquele espírito bolchevista anárquico, atento ao ridículo das convenções e das máscaras sociais que procuram maquiar a violência das injustiças na sociedade.

Eduardo Palmério continuou escrevendo e publicando até as vésperas de sua morte, no dia 4 de janeiro de 1976, aos 69 anos de idade. Uma das grandes características de toda a sua carreira jornalística foi o caráter eminentemente ético de seus artigos. Em seus textos satíricos fica evidente a crítica social e o esforço para se pensar uma nova ordem para o Brasil. E para não deixar dúvidas sobre o propósito de sua produção intelectual, essa disposição ficou registrada pelo próprio autor, no prefácio que ele mesmo escreveu para um de seus livros:

“Afirmam os homens ‘sensatos’ que é perigoso mudar a ordem natural das coisas. Mas pergunto: essa ordem é natural? Acredito que, no desejo de melhorar nossas condições particulares ou gerais, toda insensatez é perfeitamente justificada. Mais vale errar por conta própria do que deixar que acertem por nós.”

Este foi o Camarada Lorotoff!

Por uma nova história do povo de Uberaba

André Azevedo da Fonseca



A história do povo de Uberaba foi raptada, encarcerada e passa fome. Nunca contaram nossa história. Quando procuramos nos livros, encontramos sempre as mesmas referências a duas dúzias de figurões que, pelo único mérito de terem sobrenomes, deixaram registradas a sua ilustre presença nos cargos honoríficos que seus próprios compadres os levaram. Não é à toa que a população em geral ignora essa história. De fato, ela não nos diz respeito.

Mas felizmente novos estudos caminham para uma mudança radical dessa perspectiva. Cada vez mais os historiadores têm concentrado a atenção nas pessoas comuns, em vez de estudar apenas a história dos dirigentes. Essa abordagem baseia-se na idéia de que a dinâmica de uma cidade não é movida apenas pelo Estado ou pela economia, mas por toda a sociedade, formada por pessoas como nós, que trabalhamos em nossos empregos, relacionamo-nos uns com os outros e simplesmente vivemos as nossas vidas.

Toda essa complexidade social é o grande tema de pesquisas atuais. Há tempos foi abandonada a idéia de biografia dos “grandes líderes”, pois percebe-se que estes não têm em si todos os elementos para explicar as transformações de seu povo. É claro que, nas democracias modernas, essas figuras representam anseios que na verdade são coletivos. Mas aprisionar a História à vida dos dirigentes, como se apenas eles fossem agentes históricos, é um princípio que contraria a própria lógica democrática.

Sabe-se que a ação individual de homens e mulheres é muito pouco perante as forças do contexto no qual estão inseridos. Ao contrário do que os políticos profissionais e seus assessores costumam pregar para justificar sua existência, transformações sociais nunca são resultados de atos individuais, mas dependem de uma série de pré-condições que a sociedade como um todo impõe através da imprensa, das associações, dos sindicatos e das manifestações públicas. Além disso, como ensina o historiador Paul Veyne, para compreender a sociedade é preciso observar todos aqueles elementos chamados “não-factuais”, os pequenos acontecimentos diluídos no cotidiano, cuja importância social não é percebida imediatamente. Eventos históricos acontecem todos os dias, mas como ocorrem sutilmente em nosso cotidiano, nem sempre nos damos conta de sua relevância.

Se queremos entender como a cidade se tornou o que é, não devemos estudar apenas uma exceção de cidadãos que ocuparam cargos públicos. Essas figuras excepcionais não vivenciam a mesma experiência que nós. Para interpretar a história de nossa gente, devemos olhar para a vida das pessoas comuns em suas contradições e diversidades.
Cada um de nós é um agente histórico de muita importância. Portanto, se quisermos realmente escrever a história dos uberabenses, precisamos nos libertar dos dirigentes para mergulhar diretamente nas vidas dos habitantes da cidade. Essa nova história de Uberaba ainda está para ser contada.